O
Andarilho
Capítulo final
A
Bíblia
Anoitece.
Em uma
pequena igreja, no fim de uma rua pouco movimentada, ouve-se um cântico de
louvor a Deus. Um hino suave de adoração.
As poucas lâmpadas dos postes públicos,
que tentam iluminar a rua, conseguem emprestar ao ambiente apenas uma penumbra
soturna.
Do pequeno templo, a luz gerada, como
que abraçada ao louvor reinante, atravessa as janelas e se projeta aos céus.
A noite se adianta nas horas. O culto
termina. Em grupos, os fiéis pouco a pouco buscam seus lares.
Um jovem, segurando nas mãos uma
Bíblia, ao dobrar uma esquina é abordado por um marginal:
– Fica quieto aí, meu chapa. Passa a
grana.
O rapaz parou assustado. Abraçou-se ao
livro sagrado. Em silêncio, olhou para o meliante. Sentiu um frio repentino no
corpo seguido de um suor gelado que lhe brotava da testa.
O bandido insistiu:
– Não tenho toda noite para ficar aqui
contigo. Passa logo a grana, pateta.
O rapaz olhou mais uma vez para o
assaltante. Percebeu seus olhos avermelhados brilhando, mesmo naquela penumbra.
Os cabelos, escorridos em tranças mescladas com algumas miçangas coloridas,
desciam-lhe até os ombros. A pele clara do rosto, marcada por espinhas,
realçava a barba negra e rala por fazer. Nas mãos, com uma tatuagem multicor em
forma de dragão, sustentava uma arma que refletia a pouca luz do lugar.
Com esforço o rapaz falou:
– Não tenho dinheiro, moço, nem para o
ônibus.
– Escuta aqui, meu chapa, se pensas que
me enganas, estás frito. Se não tiveres grana vais morrer. Já viste alguém
morrendo?
O rapaz, sentindo o hálito de cachaça
quando o bandido falou encostando a arma em seu rosto, insistiu:
– Não estou enganando. Não tenho
dinheiro nen-hum . A única coisa que tenho é minha bíblia.
– Achas que sou otário para me
contentar com uma bíblia? Quero grana.
O rapaz ficou em silêncio por mais um
momento. Com muito receio falou:
– A paz que eu sinto na minha vida, é
porque sigo a Palavra de Deus. Não porque tenha dinheiro. A bíblia é a Palavra
de Deus. Levo uma vida modesta com minha mãe.
O assaltante, enraivecido, gritou
descontrolado:
– Eu te avisei... não sou otário...
E, olhando nos olhos do rapaz, disparou
a arma duas vezes contra seu peito. Antes que fugisse abaixou-se, juntou a
bíblia. Jogando-a sobre o corpo inerte do rapaz, debochou:
– Leva a Palavra do teu Deus contigo.
Um menino de aparência franzina,
cabelos negros, pele clara, que passava naquele momento e que presenciara o
fato, aproximou-se do corpo caído. Ajoelhou-se ao lado. Fitou-lhe nos olhos e
procurou ouvir algumas palavras que foram balbuciadas:
– Por favor, entregue esta bíblia para
minha mãe. Diga-lhe que a amo muito.
O menino percebeu que a luz daqueles
olhos se apagaram. Tomou nas mãos o Livro Santo. Lentamente, afastou-se.
No canto de uma sala modesta, sentada
em uma velha e desgastada cadeira de balanço, uma senhora, aparentando setenta
anos de idade, fazia tricô.
Seus cabelos brancos, enrolados
displicentemente no alto da cabeça, o rosto sulcado pela vida, os óculos
amarrados com barbante vermelho sustentando a haste de apoio, exibiam a
situação de modéstia em que vivia.
Atraída pelas palmas batidas à sua
porta, desviou os olhos do pano que tecia. Deparou com um menino, de pé,
segurando uma bíblia nas mãos.
Olhou-o detalhadamente. De maneira gentil,
falou:
– Entre, meu filho, a porta está
aberta. Que você quer?
O menino percebeu bondade naquele rosto
triste, que sombreado momentaneamente por uma réstia de luz, atravessava,
furtiva, a janela entreaberta às suas costas.
– Bom-dia – exclamou enquanto se
aproximava da velha senhora –,vim trazer-lhe esta bíblia.
A mulher empalideceu. Esperou que ele
chegasse mais perto. Num gesto repentino, quase que arrancou o livro das mãos
do garoto. Abriu-o com ansiedade. Pôde ver algumas páginas ainda manchadas de
sangue.
Apertando o livro contra o peito,
perguntou:
– Sei que me achaste pelo endereço que
está escrito aqui na capa, mas como conseguiste isto?
O menino olhou-a com carinho e
explicou:
– Mês passado, num domingo à noite,
depois de tomar um lanche que é servido pelo pastor da igreja, no encerramento
do culto, saí procurando um lugar para dormir. Foi quando ouvi dois tiros.
Aproximei-me. Vi um homem que se afastava correndo de um corpo estendido no
chão.
A anciã interrompeu seu pequeno
interlocutor:
– Não viste o rosto dele? Deu para
reconhecer quem era?
Apesar de menino, compreendeu o porquê
da fisionomia de angústia que se retratou naquela senhora.
– Estava escuro, não deu para
reconhecer, não, senhora – , respondeu de pronto. Continuou sua narrativa:
– Percebi que aquele rapaz ainda estava
vivo. Abaixei-me para tentar socorrê-lo, mas não houve mais tempo. Ele apenas
disse antes de morrer: “entrega esta bíblia para minha mãe. Diz que eu a amo
muito”.
Lágrimas pesadas fluíram dos olhos
cansados daquela mulher. Ela segurou com uma das mãos a peça de tricô que tecia
e que havia deixado cair em seu colo. Com a outra, a bíblia. Levantou-se
devagar da cadeira de embalo. Andou em direção a uma mesa desgastada por
décadas, ornada com um vaso de flores já sem vida, deixou os objetos e buscou
na velha geladeira um pouco de água.
O garoto, em silêncio, assistiu àquele
ritual de dor, de saudade, quase sem mover um músculo que fosse.
Andou mais um pouco em direção à
janela, abriu-a de par em par. Enquanto a brisa que soprava suave
acarinhava-lhe os cabelos nevados, falou devagar:
– Era um filho bom. Trabalhava duro
para que não faltasse nada dentro de casa... Estudava de noite... Era
carinhoso, era temente a Deus.
Fez uma pausa como que buscasse forças
para continuar:
– Freqüentava a igreja, fazia parte do
coral. Estou procurando entender por que Deus o levou.
Timidamente o menino argumentou:
– Deus sempre tem um propósito em tudo
o que faz. Custa-nos por vezes, entender os seus desígnios.
– Meu filho, sirvo a Deus por muitos
anos. Não estou revoltada... a dor que sinto é de saudade. Oro pedindo forças
para suportar essa provação. Mas por que meu filho...
O menino apenas olhou em seus olhos.
Ela continuou:
– Confesso que tenho vontade de acabar
também com esse criminoso.
– Entendo sua revolta, senhora, mas
Deus não disse para amarmos nossos inimigos?
– Como poderei amar o homem que matou
meu filho? Será possível isso?
O menino a segurou em uma de suas mãos.
Mansamente falou:
– Tudo poderia começar com um perdão, a
senhora não acha? Jesus na hora de sua morte pediu que seu Pai perdoasse seus
algozes. E nós fomos esses algozes através do pecado. Ele morreu para nos
salvar.
Ainda de frente para a janela, ao
carinho da brisa que não parava de soprar, enxugou as lágrimas do rosto com as
mãos. Continuou:
– Onde moras, guri?
O menino, que a acompanhara até a
janela, retrucou:
– Moro em vários lugares. Onde paro é
minha casa.
– Estás dizendo que moras nas ruas? Não
tens casa? Não vês que é perigoso? Não viste o que aconteceu com meu filho?
O garoto ficou em silêncio por um breve
instante. Olhou-a carinhosamente para responder:
– Tenho muitas casas. Onde me recebem,
moro.
A senhora voltou para a cadeira de
embalo. Ofereceu um banquinho para o menino. Com a voz embargada, continuou:
– Soube que a polícia prendeu o homem
que matou meu filho. Ele confessou. Tem apenas 19 anos. É viciado em drogas.
Aos 17 anos matou um outro menino de 16 em uma briga de gangues. Havia fugido
da casa de detenção de menores há poucos dias quando matou meu filho.
O menino que ouvia atento, calado,
ajeitou-se no banco, e falou:
– Os homens seriam diferentes se
procurassem mais a Deus.
A mulher observou em seguida:
– Vejo que alguém já te falou de Deus.
Os dois mantiveram uma longa conversa.
Ao se despedirem, a senhora falou:
– Gostaria que voltasses outra vez para
continuarmos a prosa. Vem amanhã cedo tomar café comigo.
O menino sorriu, beijou as mãos da
setuagenária. Ganhou as ruas.
A noite caiu silenciosa sobre aquele lugarejo.
Na
humilde casa, a velha senhora sentou-se à frente de uma
pequena televisão. Entre
cochilos, uma notícia
despertou-lhe
a atenção: uma rebelião na cadeia local deixou alguns mortos. Entre os vários
feridos, o assassino de seu filho.
O dia estava clareando quando a mulher
abriu a porta da casa. Do outro lado da rua pôde divisar a silhueta magra do
seu visitante do dia anterior. Chamou-o acenando com a mão.
O menino atravessou a rua, aproximou-se
da velha senhora. Cumprimentou-a:
– Bom-dia!
Com um breve sorriso, convidou o guri
para entrar:
– Vem tomar um café. Está quentinho.
Fiz há pouco.
A mulher fez com que o menino sentasse
à mesa. Serviu-lhe, em uma caneca colorida, café com leite. Serviu-lhe também
um bom pedaço de pão esquentado com manteiga. Sentou-se do outro lado da mesa.
Ficou observando a criança através da fumaça que saía de sua caneca.
O menino percebeu aquele olhar de
saudade e comentou:
– Está se lembrando de seu filho, não é
verdade?
Ela ficou em silêncio. Depois falou:
– Tens razão. Estou me lembrando do meu
filho. Sempre lhe servia café nessa caneca. Era a sua preferida. Desde menino,
assim da tua idade, ele sentava nesse lugar e usava essa caneca que ganhou de
aniversário quando completou 10 anos.
O guri sorriu, bebeu um gole do café,
deu uma mordiscada no pão. A mulher sorriu também. Em seguida levantou-se, foi
até o menino, abraçou-o carinhosamente. Balbuciando falou:
– É incrível, comes exatamente como ele
comia.
A mulher voltou a sentar-se do outro
lado da mesa. Continuou a falar:
– Foi Deus que te enviou aqui comigo.
Depois que conversamos ontem, fiquei me sentindo muito melhor.
– Fico feliz por isso – disse o
rapazola sorrindo.
A mulher esperou pacientemente que o
guri terminasse de tomar café para comentar:
– Hoje precisarei sair de casa. Vou até
o hospital municipal. O homem que matou meu filho tentou fugir da cadeia e foi
ferido. Preciso falar com ele. Tenho algo para lhe entregar.
– Posso ir com a senhora, se desejar.
Não demorou muito para que os dois
saíssem juntos.
No hospital, o menino ficou aguardando
na porta enquanto a velha senhora foi conduzida até a enfermaria na qual se
encontrava, algemado no leito, o enfermo detento.
Aproximou-se
devagar. De pé à cabeceira do leito, olhou nos olhos daquele homem. Viu ali
retratada a alma da marginalidade, do desamor, do ódio que habita em corações
vazios e descrentes.
O
marginal inclinou a cabeça em sua direção. Falou desconfiado:
– Eu
lhe conheço, dona?
– Não,
não me conheces – respondeu de pronto. E continuou:
– O
rapaz que mataste quando saía da igreja era meu filho.
O
marginal interrompeu:
– Dona,
devo dizer-lhe que já cometi muitos erros em minha vida; até matei. Não volto
atrás. A única coisa da qual me arrependo é de ter morto seu filho. Até hoje sinto
remorso pelo que fiz. Se pudesse desfazer isso...
A
mulher, entristecida, falou:
– Vim
aqui para dizer que te perdoo pela morte do meu filho. Vim trazer-te também um
presente.
Estendendo
a mão em sua direção, ofereceu-lhe a bíblia que carregava.
O marginal
olhou-a nos olhos mais uma vez. Com a mão que estava livre, recebeu o Livro
Santo. Olhou-o como que assustado e falou baixinho:
– Ele
estava com esse livro quando o abordei. Foi nele que se abraçou como que
pedindo proteção.
A
senhora, com lágrimas nos olhos, retrucou:
– Todos
morreremos um dia. Não importa a hora nem quando. Importa se estamos ou não com
Deus e Ele esteve com meu filho em todos os momentos de sua vida. Agora estão
mais juntos que nunca.
A mulher, a passos lentos, se afastou
do leito do marginal, mas viu que uma lágrima sorrateira escapou-se-lhe dos
olhos quando percebeu que o livro estava manchado com o sangue que maldosamente
derramara.
Ao encontrar o menino na saída do
hospital, falou com ternura:
– Meu filho, foi muito bom ter-te
conhecido, conversado contigo. Estavas com a razão. Não sabes o quanto me fez
bem perdoar esse moço. Sinto-me aliviada. Vamos para casa.
Aquela senhora cansada pela vida passou
a mão por cima dos ombros de seu pequeno acompanhante. Seguiram conversando.
Almoçaram juntos. Antes que a noite
caísse, o menino despediu-se, levando consigo, em seu pequeno bornal, uma
antiga e colorida caneca que recebera de presente daquela senhora.
Mais
uma vez, sem rumo, abraçou o caminho incerto das ruas.
Pr. Antonio Jorge
ajorgefs@gmail.com